sábado, 1 de março de 2008

Agora há pouco, no Soletrando

Eu jurava que isósceles não tinha o primeiro S. Será que meu livro de Matemática estava errado? Será que o detalhe me escapou? O próprio Sérgio Nogueira admitiu que a raiz iso- é traiçoeira, que não há uma regra clara sobre quando temos o SC.

Em todo o caso, o que derrubou o guri do Tocantins não foi o SC. Ele soletrou ixóceles. Gato com J? De modo algum. Ele deve ter pensado em executar, em que o inconstante X tem som de Z. Foi, para mim, a mais ingrata palavra da rodada.

Já o candidato do Distrito Federal pecou ao tascar ombridade, sem H. Mais um caso de erro por desconhecimento de vocabulário.

Já o representante mineiro, um humilde jovem do Vale do Jequitinhonha, falou a frase de efeito mais honesta e tocante até agora. Não me lembro exatamente, mas era algo assim: 'Apesar da pobreza, o Vale do Jequitinhonha tem gente de valor'. E ele provou esse valor ao corretamente soletrar extensão. Ainda que a edição da apresentação lhe tenha sido extremamente favorável.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

'Hinferninzação'

Outra grande dificuldade da língua diz respeito ao hífen. É, com perdão do trocadilho, um hinferno.

Existem duas categorias principais de uso. Há o hífen de super-homem e há o hífen de dona-de-casa.

O primeiro é o hífen dos prefixos, que têm inúmeras regras. Normas, aliás, que a reforma ortográfica quer apagar. Realmente, não faz sentido você hinfernizar extra-oficial e escrever antiinflamatório tudo junto. Isso seria nivelado por baixo: praticamente tudo perderia o hífen, salvo em super-reforma. Alegam que aí você tem o som de três erres.

O que vocês podem saber para simplificar a vida é que a grande parte das palavras prefixadas não pede hífen. Isso só poderá ocorrer - e depende ainda do prefixo - se o que vier depois do tracinho for vogal, H, S ou R.

Megacondomínio? Supercasa? Internacional? Bicentenário? Hexacampeonato? Tudo sem hífen.

Já o outro círculo hinfernal é o da derivação de sentido. Quando duas palavras se juntam para formar uma outra acepção, costuma-se pôr hífen.

O braço direito dele ficou preso no portão.

Então? Tem ou não tem? Se for o braço, não, obviamente. Mas se for o homem de confiança, tem. Braço-direito.

Outro caso duplo: quando você sofre com enxaqueca, você tem dor de cabeça. Quando alguma coisa aporrinha você, é uma dor-de-cabeça.

Existem exceções — claro, o que seria o português sem elas —, mas eu proponho uma rebelião em prol da lógica. Alguns dicionários registram sem hífen termos que ao meu ver deveriam ter, como homem forte (no sentido de ser o maior braço-direito).

Assim, proponho a regra: mudou o sentido? Hífen. Como em alto-mar.

Mar alto

Não é um Gato com J, mas mancha.

Como se chama essa novelinha que o Renato Aragão protagoniza esta semana, antes de Malhação?

Poeira em alto mar. Sentiu falta de alguma coisa?

Sim, faltou um hífen. Alto-mar tem hífen.

E daí? Como já disse, não é um Gato com J. Mas não custava nada um programa voltado para crianças escrever direito.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Metapiadas

Já falamos de pleonasmo. Hoje falaremos de metalinguagem.

Soa chato? Vocês verão que não.

Metalinguagem é a língua que serve para se descrever ou descrever outra. É a língua falando da língua.

Já uma metapiada seria a piada dela mesma.

Eu conheço duas. Uma em português, outra em inglês.

A estrangeira foi tema de um documentário que anda passando na HBO. É a Piada dos Aristocratas. Já a nossa é a Piada do Tchu.

Ambas, na essência, não têm a menor graça. Para ter sucesso, dependem de quem as conta. Seguem a mesma fórmula: têm começo e fim. O meio fica por conta do piadista. Por serem livres, permitem devaneios, fugas, improvisações, encenações. Se a pessoa for talentosa, pode ser ovacionada.

Eis a fórmula dos Aristocratas:

- Um comediante procura um produtor e diz: 'Eu tenho um número maravilhoso para apresentar no seu teatro!!!'. O produtor: 'Como é?'. E o comediante começa.

Neste ponto entra a improvisação do cara. Americanos normalmente usam e abusam de toda sorte de devassidão, podridão e bizarrices sexuais entre uma família com pai, mãe e casal de filhos. Há quem inclua animais na orgia. O primeiro intuito não é chocar, mas fazer rir da situação esdrúxula.

Terminada a exposição, o comediante tem de voltar à fórmula.

- O produtor, então, pergunta: 'Ótimo número! Como se chama?'. E o comediante responde, gesticulando à Carmem Miranda: 'The Aristocrats!'

No documentário, todos elogiam o que seria o Picasso da Piada dos Aristocratas. É Gilbert Gottfried, num evento do playboy-mor Hugh Hefner. O vídeo está em inglês. ATENÇÃO: antes de clicar, vá preparado para muita baixaria.

Já a Piada do Tchu, apesar de tão infame quanto, é infinitamente menos pornográfica, quiçá casta. Sua fórmula é aberta, permite que o comediante estabeleça tempo, local e situação. Pode ser tanto na Idade Média quanto na esquina da sua rua.

Envolve basicamente o seguinte: um cara encontra um grupo que saúda, com cânticos e vivas, um tal de Tchu. A partir daí, o piadista tem de criar situações rocambolescas para dificultar a entrada desse cara nos adoradores do Tchu. Ou então principiar uma saga pelos grotões, inventando obstáculos para retardar o Encontro (é importante frisar a caixa alta). Há quem explore condições bizarras, como ter de usar um broche do Pokémon ou calçar sapatos bege para ser aceito.

Se o Aristocratas não depende de duração, o Tchu tende a fazer mais sucesso caso seja interminável. Quando o carrasco-piadista se certificar de que a audiência já está de saco cheio, deve seguir mais ou menos isto:

- Aí, o cara finalmente chega a uma caverna/templo/galpão/parque. Lá, encontra um fortão sem camisa/encapuzado/de batina com uma tocha acesa na mão e um balde d'água/em frente a uma poça/um lago. Cânticos evocam o Tchu num volume que cresce a cada instante. O fortão, então, com uma voz de trovão, grita para a multidão: 'VOCÊS QUEREM VER O TCHU???'. No que a turba clama por sua presença, ensandecida, o fortão ergue a tocha e a enfia na água: TCHUUUUU...

Conhece uma versão inusitada? Conte para a gente.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Soletrem isso

Sugestões para queimar os neurônios dos pequenos soletradores do Caldeirão do Huck:

Auscultação - é o que o médico faz para saber se o coração está acelerado ou se o pulmão está chiando. O aparelho, o auscultoscópio, também é uma boa pedida.

Bacineta - bacia pequena.

Bacterioplânctones - conjunto de bactérias que vivem entre os plânctons. Dessa cepa vem também a bacteriotoxemia, que é a medição de toxinas desses bichos no sangue. O x é igual ao de táxi.

Isso vai demorar. Continuo depois.

Sujeito quem?

Muita gente ainda não sabe usar vírgula.

Um dos Gatos com J mais comuns é separar sujeito do predicado com vírgula.

Os alunos, se esqueceram de entregar o trabalho a tempo.

Olhando assim, vocês possivelmente exclamarão:

- Mas não é possível!

A língua, meus caros, tem suas armadilhas.

Quem nunca cometeu infrações de trânsito em toda a vida, merece um prêmio.

Quanto maior o sujeito, maior a chance de cair uma vírgula no lugar errado. E sujeitos-quem são mestres em induzir a pessoa ao erro.

Isso porque normalmente um sujeito-quem pode vir cheio de penduricalhos, como no exemplo que dei acima. A leitura da frase também sugere uma 'pausa' que faz a mão coçar para enfiar a maldita vírgula.

O assunto não se esgota aqui. Mas vamos combinar: sujeitos-quem, assim como todos os outros, não pedem vírgula antes do predicado.

Em toda a parte ou em toda parte?

É, de novo, aquela velha história.

Ao pé da letra, em toda a parte seria a parte inteira. No caso, quando a gente quer dizer que algo ocorre em qualquer lugar, o melhor é dizer em toda parte.

Duas ou três coisas sobre a reforma ortográfica

No ano passado pipocaram matérias nos jornais sobre a reforma ortográfica. O projeto, que não é de hoje, estaria para entrar em vigor em breve, o que causaria uma pequena revolução nas escolas, redações e sobretudo editoras.


Num post abaixo, falei de uma lógica da acentuação das palavras. Em tese, a reforma segue no rumo de aprumar essa lógica. A maioria das mudanças diz respeito à eliminação de acentos.

Como se chama o lugar onde as abelhas moram? Tem acento? Pois a reforma quer tirar. Escreveríamos colmeia, assim como assembleia e heroico. Uma paranoia?

Especialistas da língua criticam a proposta. Apóiam uma reforma, mas não esta, que, segundo eles, mexe pouco e mal. A Veja, ano passado, deu capa sobre o tema. Entre os argumentos a favor, está a unificação editorial nos países que falam e escrevem português. Um livro do nosso Saramago fatalmente tem uma versão portuguesa e outra brasileira, embora lê-lo sem retoques seja um dos encantamentos que ele nos reserva.

Enquanto não se chega a um consenso, muita gente pergunta: tá, mas na prática o que muda? Por enquanto, nada. Os acentos valem, o trema vale.

Aliás, acho um pecado acabarem com o trema. Mas isso é assunto para mais de um post.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A lógica da acentuação

Decorar as regras para pôr agudos, circunflexos, tis e tremas corretamente nas palavras está entre as coisas mais irritantes da língua portuguesa.

Aposto que muitos de vocês que seguiram carreira bem longe das letras ainda se perguntam por que tiveram de aprender que paroxítonas terminadas em a, e e o são acentuadas.

E acentuação não nos torra só no colégio, não: nove entre dez concursos públicos metem os casos mais raros em suas rocambolescas provas de português.

Dou razão a todo aquele que reclamar do assunto. É preciso ter muita paciência para lidar com agudos, circunflexos, tis e tremas.

Não adiantaria aglutinar as regras de acentuação e jogá-las aqui. Também não conheço nenhuma fórmula mágica que tire todas as dúvidas. Bem, até tem: é o dicionário.

Mas lucubrei um tanto sobre isso e cheguei a uma conclusão. Lingüistas, corrijam-me se eu estiver errado.

A acentuação é uma marca das minorias.

Veja bem: você não acentua toda e qualquer palavra. Na frase anterior, apenas o você levou acento. Qual é a lógica?

Para começar a entender acentuação, você precisa primeiro saber o que são sílabas tônicas. São as sílabas mais fortes, são as que 'puxam' a palavra. Aprendemos na escola uma maneira fácil de distingui-las: chamemos por elas.

Imagine que você está numa feira livre e vê uma grande amiga sua, a Dona Palavra, comprando peixe na barraca do outro lado da rua. Você, então, grita:

- Ô Dona PaLAvra!!!

E assim você a encontra. Não a Dona Palavra, mas a sílaba tônica.

Você já deve ter percebido que nem todas as sílabas tônicas levam acento. Você não escreve palávra, nem peníco.

A lógica — a que eu me referi lá em cima —, ao meu ver, é simples. As sílabas tônicas seguem um padrão. A partir daí, surgem grupos majoritários de palavras. Por serem mais numerosas, elas ditam a regra.

O acento indica a exceção.

Alguma vez eu vi ou li que as paroxítonas são maoria em nossa língua. É paroxítona a palavra cuja penúltima sílaba é a tônica. Se você pegar as regras de acentuação, verá que somente as palavras mais doidas levam o acento. São as que terminam, por exemplo, com ã/ãs, ão/ãos, um/uns, ps e x, entre outras. Como você pode concluir, são as minorias.

E como eu explicaria por que Caju não tem acento, como consta até de placas oficiais? Mais uma vez, é a regra da maioria. Esse grupo de palavras — formalmente chamadas de oxítonas terminadas em i e u — segue o padrão de a sílaba tônica ser a última. Sempre. Por isso, xixi e Peru não têm acento.

Já as proparoxítonas sempre têm acento. Nelas, a antepenúltima sílaba é a mais forte. Como são raras, e não a maioria, precisam da marca para que último não seja lido como ultímo.

Querem um exemplo: como se pronuncia misantropo?

(Em tempo, misantropo é quem odeia a humanidade, as pessoas)

Ficaram na dúvida entre miSANtropo ou misanTROpo? Fácil. Fosse miSANtropo, teria acento, pois seria uma proparox. Como não tem, é uma parox. E a maioria das paroxes não tem!

Espero não ter embaralhado a cabeça de vocês.

Para os saudosistas que sentiram vontade de reviver as aulas de português, indico um bom resumo. E muitos de vocês cantam e se encantam com uma música famosa que explora as proparoxes.